Artigo de opinião
Crianças à venda em nome do engajamento: A denúncia de Felca que parou o Brasil
Esse é um artigo de opinião assinado por Aryanne Costa e não reflete, necessariamente, o posicionamento do jornal.
Não é exagero dizer que o Brasil parou para assistir a um vídeo de YouTube. Não um clipe, não um escândalo vazio — mas uma denúncia meticulosamente construída, que expôs o que muitos fingem não ver: a exploração de menores, maquiada de entretenimento.
Na era das redes sociais, onde tudo é acelerado e descartável, o que se viu foi diferente. O youtuber Felca, conhecido pelo humor e sátira, rompeu sua rotina e entregou um trabalho quase documental, revelando uma realidade assustadora por trás da exposição de crianças e adolescentes nas mãos de influenciadores digitais.
Felca já era conhecido pelo seu humor ácido e suas críticas sociais bem-humoradas, conquistando milhões de seguidores. Mas nunca havia se lançado em um conteúdo tão sério e impactante como este, que mais se assemelha a um documentário do que a um vídeo comum. Com calma e clareza, ele desmonta a chamada “adultização” infantil nas redes, revelando cenas e situações que não deveriam ser expostas — e que, ainda assim, viralizavam sob o olhar complacente de plataformas, influenciadores e, principalmente, dos adultos responsáveis.
Hytalo Santos, influenciador digital paraibano, construiu sua fama exatamente nesse terreno perigoso: expor menores de idade — muitos apresentados como “filhos adotivos” — em vídeos que misturam ostentação, dança e uma naturalização precoce da sexualidade. Não se trata de um deslize isolado ou de um conteúdo eventual. É uma construção constante, onde adolescentes aparecem em roupas e situações que ultrapassam o limite do aceitável, capturando a atenção de públicos com intenções nem um pouco inocentes.
Essa exposição cria uma armadilha cruel: por trás dos sorrisos e da fama, há uma exploração que vulnerabiliza ainda mais essas crianças e adolescentes, tornando-as vítimas da própria visibilidade que deveria protegê-las.
A denúncia de Felca teve um impacto rápido e avassalador. Em poucas horas, milhões de pessoas assistiram ao vídeo que denunciava a adultização precoce e a exploração velada de menores nas redes sociais. A repercussão foi tão grande que as contas de Hytalo Santos e da adolescente Kamylinha foram desativadas no Instagram, numa medida que ainda gera dúvidas sobre ser uma iniciativa das próprias plataformas ou uma resposta à pressão pública.
Além disso, o caso ganhou a atenção do Ministério Público da Paraíba, que já investigava situações semelhantes desde dezembro de 2024. As investigações buscam apurar a responsabilidade não apenas do influenciador, mas também dos pais e responsáveis pelos menores expostos, que podem ter agido com omissão diante de uma situação tão grave. O episódio despertou ainda a mobilização de parlamentares, como a deputada Érika Hilton, que solicitou a intervenção da Polícia Federal para investigar esses crimes e pressionar por ações concretas das plataformas digitais.
Esse movimento coletivo evidencia que a exploração e a sexualização de menores nas redes sociais não podem mais ser ignoradas ou naturalizadas. A rapidez com que as contas foram derrubadas e as autoridades acionadas mostra que há uma urgência em rever os mecanismos de proteção, fiscalização e punição dentro desse ambiente virtual.
A responsabilidade por esse cenário assustador é multifacetada e não pode ser atribuída a um único agente. Em primeiro lugar, está o influenciador, que, no caso de Hytalo Santos, ultrapassou todos os limites éticos e morais ao transformar a vida de menores em mercadoria para engajamento digital. Usar adolescentes em cenas que beiram a sexualização, para atrair visualizações e seguidores, é uma violação clara dos direitos dessas crianças e adolescentes, que deveriam estar protegidas do olhar predatório, não expostas a ele.
Porém, a culpa não é exclusiva dele. Os pais e responsáveis pelos menores, muitos dos quais aparentam compactuar ou, no mínimo, negligenciar essa exposição, têm papel fundamental nessa cadeia de omissão. O descaso deles contribui para que essa “adultização” precoce aconteça sem barreiras, deixando vulneráveis aqueles que mais precisam de proteção.
As plataformas digitais, embora estejam no centro do debate, ainda agem de forma reativa e insuficiente. A demora para derrubar perfis com conteúdos abusivos mostra que algoritmos e políticas de moderação ainda são falhos, permitindo que conteúdos nocivos se propaguem antes que medidas sejam tomadas. A internet, que deveria ser espaço seguro para todas as idades, vira terreno fértil para abusos quando o interesse comercial se sobrepõe à proteção dos usuários.
Finalmente, há o papel das autoridades, que, mesmo já investigando casos similares, precisam intensificar a atuação preventiva e a punição efetiva. A legislação existe, mas a aplicação precisa ser rigorosa e célere para dar a devida resposta às vítimas e desestimular esse tipo de exploração.
Enquanto consumimos conteúdos nas redes sociais, é urgente perguntar: até quando vamos permitir que crianças e adolescentes sejam transformados em espetáculo para o entretenimento — e, pior, para o lucro — de adultos sem escrúpulos? A responsabilidade é coletiva, e a omissão é cúmplice. Se não agirmos agora, amanhã estaremos colhendo as consequências de uma sociedade que fechou os olhos diante do sofrimento dos seus próprios filhos.